quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Arrumar o quarto



Guardo esta noite para a reconciliação. Quantos voltaram a escrever após arrumarem o quarto. Uma noite inteira para olhar um a um os livros caídos. Se eu pudesse, fotografaria esta cascata. Quanto tempo? Me reconciliar com a poeira dos discos, das revistas, desempilhá-los, observá-los um a um em seu abandono, um quarto. Durante, arroz no fogo, meus dedos abandonam o corte da página, corte preciso, resto de cenoura. Geladeira abandonada. Retorno.

Coletar tomates de uma horta seca. Selecionar a audição de um disco, dois mil e oito. Procuro a data, não encontro. Pintura romântica na estampa da camisa que retiro da mala. Repovoar o guarda-roupa. Com o arroz prestes a queimar, deslizo meus dedos pelos cabides soltos, pelo desejo. A página em corte ainda vivo. Observo os dedos, tão longos para esta idade; de quem herdei os dedos, encaro a noite. Troco as cortinas. Agora a luz virá, quando for de vir.

Se eu pudesse pousar um porta-retrato sobre a escrivaninha. Se houvesse moldura possível para hoje, qual canto. O disco se interrompe sozinho, demoro a ouvir. Demoro a ouvir o silêncio do disco, quanto tempo calado, meu deus, quanto tempo. Cenoura em toco. Plantas semimortas. Cuidar da horta, trocar as cortinas, ainda não é hora de ir lá. Quase tropeço. De tanta demora, estou prestes a virar imagem.

Arrumar o quarto e só agora, dois mil e dois, voltar à casa que se foi. Abro uma revista, leio os resultados. Uma frase, uma história contada a partir de uma frase. Milena se suicida porque já não aguenta os arquejos da mãe. Escreve na borda de uma partitura: não aguento os arquejos de minha mãe. Procuro pelo autor da história dentro do quarto. Mas ele está fora, algo me diz que ele está lá. Ainda não é hora. Retiro da mala o pior dos agasalhos.

Se este texto for tentativa de me comunicar com Milena, não digo. Despetalo a rosa azul e procuro na pilha os livros do mar, que avançam em direção à cama. Londres dentro do quarto. Para que eu possa um dia reencontrar os rastros e perseguir o mar através dos livros como quem procura nas mesmas pétalas azuis a rosa de antes. Dois mil e sete. Arrumar o quarto e ir deixando rastros de uma passagem vaga que no entanto acumula louças, e a poeira quem tira?

Deitar sobre a cama, afastar os livros para evitar o corpo a corpo noturno. Após comer uma comida triste. Após o disco reiniciado quantas vezes. Deitar sobre a cama, afastar as canetas, a jangada em miniatura que sem querer, os cabides soltos, afastar o desejo para que um corpo possa caber. Arrumar o quarto, rastros pela casa, casa, uma presença vaga. Retorno. Através um durante.


***


Douglas de Oliveira Tomaz, 24 anos, é autor do blog pessoal www.abrigosdevagabundo.blogspot.com.br, foi premiado pelo concurso literário do Clube de Escritores de Ipatinga – MG (Clesi) e possui textos seus publicados pelas revistas Jangada e Conhecimento Prático - Literatura. Publica regularmente crônicas n’O Salto e mora em Belo Horizonte, onde escreve seu primeiro livro de contos.

Ilustração: Vinícius Ribeiro. Começou a desenhar desde a mais tenra idade e nunca mais parou. Atualmente, estuda Artes Visuais na Universidade Estadual de Montes Claros. Colabora periodicamente como ilustrador para O Salto, além de ser autor do blog pessoal Pensamento Ilustrado (http://pensamentoilustrado.tumblr.com/)


Nenhum comentário:

Postar um comentário